[Coluna 14] Prisão após condenação em segunda instância: responsabilidade do Legislativo

No dia 17 de outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) começou o julgamento para definir se revisará sua interpretação de que é permitida a prisão após condenação em segunda instância no Brasil. Não sou jurista nem bacharel em direito, de forma que determinar qual a melhor interpretação jurídica da questão não é minha especialidade. Mas a história da nossa legislação ilumina, no mínimo, a razão de tantas mudanças de interpretação ao longo dos anos, bem como aponta para o real responsável por esse estado de coisas: o Legislativo.

O STF mudou o entendimento duas vezes sobre a possibilidade de prisão após segunda instância, e em geral não se explica claramente o porquê. Ao analisar a história legislativa do Brasil, conseguiremos iluminar as responsabilidades desse estado de coisas.

História da legislação

O Código de Processo Penal (CPP) brasileiro tem sua origem no Decreto-lei nº 3.689/1941, editado pelo então presidente Getúlio Vargas. Desde sua publicação, este código não foi revogado, apenas emendado e alterado por legislações posteriores, tanto antes quanto depois da promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988.

art. 637 do CPP, cuja redação permaneceu a mesma desde 1941, diz: “O recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, e uma vez arrazoados pelo recorrido os autos do traslado, os originais baixarão à primeira instância, para a execução da sentença.”

Ora, não parece haver dúvida que, a se considerar apenas este texto legal, a legislação autoriza a execução de sentença (como prisão) antes de se exaurir todos os recursos (ou, pelo menos, recursos extraordinários). Não há maiores controvérsias aqui. É por esse motivo que o paradigma que se herda quando da promulgação da CF de 1988 é o de permitir a prisão antes do trânsito em julgado.

É verdade, porém, que em 1984 foi aprovada a Lei nº 7.210, que instituiu a Lei de Execução Penal (LEP). Em seu capítulo sobre penas privativas de liberdade, o art. 105 estabelece que: “transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução”.

Nesse momento, foi introduzido um primeiro ruído na legislação. Sem alterar o art. 637 do CPP, a LEP condicionou a expedição de documentos para a execução da pena ao trânsito em julgado da sentença, ou seja, ao esgotamento da possibilidade de recursos.

Em seguida, a CF de 1988, no inciso LVII de seu art. 5º, estabeleceu que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Em 2009, foi impetrado um Habeas Corpus (HC) 84078 junto ao STF. A decisão da Corte foi de alterar o entendimento prevalecente, proibindo a prisão antes de serem esgotados todos os recursos, justamente devido a esses novos instrumentos legais, tanto o art. 105 da LEP quanto o inciso LVII do art. 5º da CF. Nos dizeres do voto do relator, ministro Eros Grau:

“2. Daí que os preceitos veiculados pela lei 7.210/84, além de adequados à ordem constitucional vigente, sobrepõem-se, temporal e materialmente, ao disposto no art. 637 do CPP.
3. A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar.”

Como se vê, o Supremo alterou o entendimento vigente em 2009 porque houve mudanças legislativas significativas em relação ao CPP de 1941. É verdade que essas mudanças ocorreram somente na década de 1980, e já poderiam ter sido realizadas antes. Não saberia precisar as razões para essa morosidade, mas há pelo menos justificativa legal para tanto.

Em 2011, o Congresso alterou o art. 283 do CPP, por meio da Lei nº 12.403/2011. A redação original, ainda do Decreto-lei de 1941, dizia que: “A prisão poderá ser efetuada em qualquer dia e a qualquer hora, respeitadas as restrições relativas à inviolabilidade do domicílio”. A nova redação, em linha com a interpretação de 2009 do Supremo, passou a ser:

“Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”

Assim, o CPP foi modificado, de forma explícita, para impedir a prisão sem condenação transitada em julgado – ou nos demais casos de prisão cautelar. Não houve, porém, revogação ou alteração do art. 637 do próprio CPP que, no meu entender, está em flagrante contradição com essa nova redação do art. 283.

De todo modo, a interpretação do HC 84078 prevaleceu até 2016, quando, em decisão maioria de 6 votos a 5  em ainda outro Habeas Corpus (HC 126292) o Tribunal concluiu que, surpresa, o art. 637 não é inconstitucional e, portanto, não é obrigatório impedir a prisão após a condenação em segunda instância quando há apenas recursos extraordinários.

Sem concordar com essa mudança jurisprudencial, o Partido Ecológico Nacional (atual Patriota), a Ordem dos Advogados do Brasil e o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) entraram com as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43, 44 e 45, respectivamente, para examinar a constitucionalidade do art. 283 do CPP.

Em resumo, o Brasil herdou, do Decreto-lei de 1941, uma legislação que permitia a prisão antes do trânsito em julgado de sentença condenatória. Em 2009, o STF interpretou que a CF de 1988 e a LEP proibiam isso. Em 2016, porém, o Tribunal mudou o entendimento em um outro pedido de HC, e considerou que não havia vedação constitucional à prisão após condenação em segunda instância. Portanto, voltou-se  a permitir a prisão após condenação em segunda instância. Entretanto, argumentaram PEN, OAB e PCdoB que a Corte averigue então se o art. 283 do mesmo CPP não é inconstitucional. Se não for, então ele impede a prisão antes do trânsito em julgado.

Obviamente, não escapou aos ministros do Supremo essa cadeia de implicação lógica (se a CF proíbe a prisão após segunda instância, não vale o art. 637; por outro lado, se o art. 637 é compatível com a CF, pode haver prisão após segunda instância. No entanto, se pode haver prisão após segunda instância, e o art. 283 expressamente a proíbe, então este deverá ser desconsiderado; na perspectiva inversa, se o art. 283 é constitucional, por que não teria eficácia legislativa?). Eis o que disse o ministro Teori Zavascki quando da decisão sobre Embargos de Declaração em relação ao HC 126292:

“Pode-se, quem sabe, objetar que houve omissão consistente na ‘declaração da inconstitucionalidade do art. 283, caput, do Código de Processo Penal’, (…). Mas nem essa objeção procede…” (p. 2).

Os ministros trataram de endereçar a questão, mas não quero entrar aqui no mérito das posições. Para nós, basta a clareza de que, juridicamente, a questão agora é declarar se o art. 283 é constitucional ou não e, daí, derivar a interpretação de que ele veda a prisão após segunda instância. Além disso, como espero que tenha ficado claro, as divergências das várias legislações criam conflitos interpretativos que acabam por demandar do STF o retorno – na prática – à mesma questão.


Política

O que fica claro, sem entrar no mérito jurídico das teses de ambos os lados, é que a legislação brasileira é conflitante. Nesse sentido, cabe perguntar: em que direção devemos fazer a reforma legislativa? Tornar compatível o art. 283 com o art. 637 e permitir a prisão após condenação em segunda instância? Ou alterar o art. 637 para compatibilizá-lo com o art. 283, proibindo a execução da condenação em segunda instância?

Nos EUA, por exemplo, réus cumprem pena após a condenação em primeira instância. A razão é meio óbvia: são condenados por júri popular e deve-se confiar na Justiça. Uma condenação pelo júri que não leva ao início da pena é, obviamente, equivalente a dizer que o sistema de Justiça não é confiável.

No Brasil, apenas os crimes contra a vida são objeto de julgamentos por júri popular na primeira instância. Nos demais casos, em geral, o mesmo juiz que autorizou buscas, apreensões, prisões preventivas e outras medidas instrutórias no curso da ação penal é quem emite a sentença. Assim, faz sentido evitar condenação em primeira instância para crimes que não passam por júri popular.

No meu entendimento, portanto, os crimes contra a vida – que vão a júri popular – deveriam ensejar cumprimento de pena logo após a condenação em primeira instância. Para os demais casos, a prisão após segunda instância minimiza o fato de que, na primeira instância, o juiz de instrução é quem sentencia o réu. Não é o ideal, pois a condenação em primeira instância cria um viés para os juízes da segunda, além de encarecer os custos de defesa. Melhor seria reformar o sistema judiciário brasileiro, separando com clareza a fase instrutória do processo da fase de julgamento do réu.

Não por outra razão, a Transparência Brasil apoiou no passado a emenda Peluso, que visava alterar a Constituição para deixar claro, de uma vez por todas, que se pode executar a pena após condenação em segunda instância. A OAB – um dos atores que entrou com a ADC agora – obviamente foi contra, pois advogados sabidamente ganham muito dinheiro ao defender criminosos de colarinhos branco, dadas as amplas oportunidades de protelações nas instâncias superiores. Não nos iludamos: há muito interesse em impedir que se faça justiça no Brasil. A bagunça legislativa brasileira, como mostrei aqui, contribui não apenas para isso, mas também para encher o bolso de advogados.


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil