[Coluna 19] Opacidade como estratégia: análise do “revisaço” de normas pelo governo federal

Ao fim do dia 28 de novembro, o governo federal publicou no Diário Oficial da União o Decreto nº 10.139/2019, que obriga a revisão de todos os atos normativos inferiores a decretos em um prazo de 18 meses. O que a princípio parece ser apenas mais um ato administrativo sem grande importância pode, na verdade, ter graves efeitos sobre toda a estrutura federal.

O decreto obriga órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional a revisar e consolidar todos atos normativos inferiores a decretos atualmente em vigor. Em outras palavras, portarias, resoluções, avisos, instruções normativas, ofícios, orientações, diretrizes, entre outros, serão revisados e poderão ter sua redação modificada, ser fundidos com outros atos administrativos ou até ser revogados.

Simplificar é bom, e não há dúvida de que há uma série de normas muito antigas, potencialmente gerando problemas, e que necessitam de revisão. Segundo nota à imprensa divulgada, o governo justifica que a medida reduziria o custo Brasil em até R$ 200 bilhões, pois transformaria o aparato regulatório brasileiro em algo eficaz.

Entretanto, o risco de se obrigar a revisar absolutamente tudo, sem planejamento ou estratégia transparente, é inviabilizar uma análise adequada e qualificada sobre o que está sendo revogado ou alterado. Como dizem em programação, para o governo, isto é uma “feature, not a bug”.

O primeiro problema é o volume de atos administrativos já produzidos: não existe sequer uma estimativa de quantos seriam. Em um levantamento preliminar sobre alguns órgãos que disponibilizam dados ativamente, descobrimos que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) teria, pelo menos, 217 instrumentos em vigor. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), teria cerca de 12 mil normas abrangidas pelo decreto em vigor, grandeza similar aos atos da Receita Federal, contabilizando portarias e instruções normativas.

Como um caso intermediário, o Banco Central do Brasil possui mais de 37 mil normas em vigor. O Ministério da Saúde, por sua vez, possui mais de 129 mil normas em vigor.  Evidentemente, o número de normas da maior parte dos órgãos deve oscilar entre esses extremos. Contudo, é possível que o volume de dispositivos que precisarão ser revistos, dentre as normas submetidas ao decreto, chegue a um milhão. E mesmo que o número final seja metade disso, ainda se trata de uma quantidade gigantesca, a qual resultará em um imenso volume de trabalho.

Com isso em vista, entendo que o decreto impõe uma forma extremamente ineficiente de modificar a regulamentação no Brasil. Os órgãos afetados correspondem a um conjunto heterogêneo, tanto em funções quanto em capacidade administrativa, que inclui ministérios, agências reguladoras, autarquias e órgãos como Banco Central do Brasil, ANVISA e Receita Federal, para citar alguns exemplos. Em vez de se pensar em uma estratégia que direcione o trabalho aos setores e órgãos onde há maior problema – e nos quais o governo poderia aplicar algo como a regra de Pareto, para a qual 80% dos problemas podem ser resolvidos com 20% do esforço –, optou-se por adotar uma solução genérica e totalizante.

Esse tipo de estratégia já foi adotada pelo governo atual anteriormente. Em abril deste ano, o governo publicou o Decreto nº 9.759/2019, extinguindo colegiados federais criados por decreto ou atos inferiores a decreto. Como ficou claro depois, eles sabiam quais conselhos queriam extinguir, mas usaram a extinção geral como cortina de fumaça para dificultar a accountability sobre aqueles conselhos que eram efetivamente alvos do governo.

Nesse sentido, parece ser parte da estratégia do governo dificultar a transparência e o controle da revisão das normas. Ao fazer uma revisão simultânea em todos os órgãos, será impossível que a sociedade civil, a oposição e os órgãos de controle avaliem o teor do que for alterado.

Como agravante, o decreto proíbe aplicação de multa por conduta ilícita em norma que não tenha sido revisada no prazo estabelecido. Será impossível saber se uma norma obscura será revisada a tempo. É também uma brecha para corrupção, na medida em que um agente público pode deixar de revisar uma norma de propósito, em troca de propina.

Consequentemente, somente os que conseguirem gritar mais serão capazes de barrar possíveis absurdos. Os setores menos articulados não serão capazes de avaliar essas modificações, e provavelmente deixarão passar várias mudanças prejudiciais às políticas públicas que a sociedade quer e precisa.

Essa situação assemelha-se a uma experiência que tive enquanto trabalhava em uma empresa privada, na qual empregamos uma tática para refazer um sistema de TI legado. Como não queríamos gastar tempo analisando o que cada elemento do sistema fazia, decidimos apagar tudo de uma só vez. Quando (e se) alguém reclamasse, seria porque havíamos apagado algo indevido. Diante disso, conseguiríamos restaurar o elemento com nosso backup, e colocaríamos no novo sistema. A premissa foi: se ninguém notasse, não era importante.

A diferença é que, neste caso, já havíamos tentado – sem sucesso – pedir aos demais funcionários que ativamente nos informassem o que não poderia ser apagado, e já tínhamos uma ideia clara dos riscos que essa estratégia traria para a empresa. Assim, as medidas contingenciais já haviam sido definidas. Por outro lado, essa lógica simplesmente não pode ser usada na administração pública, pois as capacidades de articulação e advocacy na sociedade são extremamente desiguais, e o aparato regulatório é resultado de dezenas de anos de construção institucional, tornando inviável o debate e a avaliação adequados de todo o aparato normativo infra-decreto em meros 18 meses.

No fim das contas, a medida compreende basicamente uma tentativa antidemocrática e ineficiente de simplificar o aparato regulatório brasileiro, que gerará altíssimos custos jurídicos ao mudar tudo de uma vez e causará muitos problemas ainda não previstos em decorrência dessas mudanças. Medidas como essa mostram como este governo não acredita em uma governança aberta à contribuição e ao controle da sociedade.

Espero honestamente que os demais poderes da República, os órgãos de controle, as entidades da sociedade civil e os próprios servidores públicos contestem essa medida, seja juridicamente ou politicamente – por exemplo, que o Legislativo Federal aprove um projeto de decreto legislativo, derrubando o decreto do Executivo. De outro modo, o governo receberá um sinal de que pode continuar a tomar medidas sem transparência nem accountability sem sofrer consequências.

 


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil