[Coluna 28]: Os desafios da Covid-19 para a transparência, controle social e democracia

Nesta coluna de retorno após minha licença-paternidade, abordo, como não poderia deixar de ser, a pandemia de Covid-19. Vou falar um pouco sobre os desafios para os temas caros à Transparência Brasil.

Saúde e transparência

A pandemia de Covid-19 traz desafios imensos para todos nós e, como não poderia deixar de ser, para a transparência, accountability, democracia e respeito aos direitos humanos de maneira geral. A incerteza sobre os impactos da pandemia, medidas governamentais e sua duração dificultam uma análise de mais longo prazo. No entanto, vale destacar como os temas caros à Transparência Brasil estão evoluindo ao redor do mundo e como podemos ficar atentos aqui.

Democracia

Em 2020 teremos eleições municipais, as quais poderão favorecer o contágio, devido a: i) filas de votação, pois proporcionam contato físico próximo; ii) urnas eletrônicas, pois digitaremos no mesmo teclado após os concidadãos; iii) a própria campanha eleitoral, que requer “corpo a corpo” dos candidatos com os eleitores.

A previsão inicial do ministro da Saúde era de que enfrentaríamos quatro meses “muito duros”. No entanto, de acordo com um estudo vinculado ao Imperial College, no Reino Unido, que vem repercutindo bastante, medidas de restrição de espaço e distanciamento social podem durar até 12 meses ou mais. É, portanto, algo a que devemos estar atentos e não simplesmente dar de barato que eleições acontecerão normalmente como em anos anteriores.

Outro problema é a deterioração das relações entre Executivo e Legislativo, com o comportamento autoritário do presidente da República. Pedidos de impeachment têm atraído cada vez mais atenção e há pedidos de renúncia e afastamento do presidente. O governo pode precisar controlar e restringir liberdades fundamentais para conter a pandemia em um contexto muito ruim do ponto de vista político. O risco de deterioração da democracia é óbvio.

Corrupção

Diante da emergência, é natural que haja dispensas de licitação. Conforme relatou a newsletter Brasil Real Oficial de 16 de março, isso já está acontecendo. É difícil fiscalizar ações governamentais em um contexto tão dinâmico e com necessidade de agilidade muito grande. Preocupa-me mais, contudo, o desperdício de recursos, algo que deve ser evitado mais do que nunca, dada a escassez mundial de recursos críticos.

Transparência

Para evitar pânico, é fundamental a comunicação com transparência pelas autoridades governamentais. Em Taiwan, por exemplo, o governo anunciou em janeiro que possuía estoque de 44 milhões de máscaras cirúrgicas e 1,9 milhão de máscaras N95, por exemplo. Desde 22 de janeiro, o Ministério da Economia taiwanês lista diariamente a capacidade de manufatura de máscaras e a demanda. Quantas máscaras o Brasil possui? Qual é nossa capacidade de produção?

Em Singapura, o governo fornece informações claras e acuradas sobre cada pessoa infectada com o vírus, incluindo idade, hospital e ocupação. Um dashboard da sociedade civil feito a partir de dados oficiais do governo é um exemplo de transparência ativa em um momento crítico.

Em artigo para a Folha de São Paulo, publicado em 21 de março, detalhei quais medidas de transparência adotadas por países como Coréia do Sul, Singapura e Taiwan estão sendo importantes para dar efetividade no combate à Covid-19. As autoridades governamentais deveriam seguir esses exemplos.

Privacidade

A “CGU do Reino Unido”, ICO (Information Comissioner’s Office) emitiu recomendações sobre proteção de privacidade, cobrindo questões sobre contatar indivíduos sem consentimento, informar terceiros sobre ter contraído Covid-19 – como colegas de trabalho, familiares, etc. – e compartilhamento de dados com autoridades governamentais, entre outras.

Os exemplos dos países asiáticos mostram que muitos dados são coletados e compartilhados entre agências e médicos, permitindo identificar os casos suspeitos e agir rapidamente. Como confiar que o governo não abusará desses dados para perseguir politicamente os cidadãos?

São questões que precisaremos nos colocar e não serão fáceis, dada a nossa tradição fortemente influenciada pelo pensamento ocidental, mais individualista e de valores liberais, ao mesmo tempo em que respeitamos pouco, na prática, dados pessoais e privacidade.

Coerção e liberdade

Na Coréia do Sul, uma democracia, várias autoridades declararam que quarentenas generalizadas e fechamentos de cidades e regiões, como na China, são incompatíveis com uma sociedade aberta e democrática. Por isso, combinaram a participação do público para auto-quarentena e as medidas de higiene com testes massivos e uso de tecnologia para rastrear os casos suspeitos.

Obviamente, a capacidade estatal para tanto não foi construída do dia para a noite, mas ao longo das últimas duas décadas, após as experiências com outras epidemias, como SARS. Além disso, o uso de tecnologia de rastreamento – incluindo dados dos celulares – sugerem que o governo desses países tem muito mais acesso a dados pessoais do que em países como o Brasil.

Por aqui, o governo já publicou portaria regulamentando internação e testes compulsórios. Existe essa medida em outros países, como na própria Coréia do Sul, mas precisamos garantir que não haja abusos, nem perseguições.


Manoel Galdino
Diretor-executivo da Transparência Brasil