Em 2017, a Prefeitura de Araucária (PR) iniciou a construção de três creches públicas, cujos projetos incluíam muros de contenção que custariam, sozinhos, R$1,6 milhão – cerca de 16% do custo total das obras. Uma empresa havia vencido as três licitações, obtendo contratos com o poder público que totalizavam R$7,8 milhões.
Acontece que os custosos muros de arrimo eram desnecessários e podiam ser substituídos por soluções de menor custo, conforme constatado à época pela equipe do Obra Transparente, projeto da Transparência Brasil realizado em conjunto com o Observatório Social do Brasil (OSB) de 2017 a 2019. Além disso, a empresa vencedora da licitação havia sido criada há 8 meses e seus documentos contábeis não demonstravam real funcionamento – muito menos a capacidade técnica necessária para construir as creches.
Diante disso, a Prefeitura alegou estar de mãos atadas: nada poderia ser feito, pois os contratos estavam firmados e os indícios não eram suficientes para caracterizar a empresa contratada como inidônea. Mas o Tribunal de Contas da União (TCU), ao analisar as provas apresentadas pela TB, determinou a anulação das licitações e a realização de novas, utilizando soluções de maior custo-benefício em relação aos muros de arrimo. No novo processo, seus custos caíram 74%: de R$ 1,6 milhão para R$ 417 mil.
E assim, em um único município, o Obra Transparente teve mais impacto na economia de recursos públicos do que seu próprio custo total, financiado pelo Fundo da Organização das Nações Unidas para a Democracia (UNDEF) em US$ 220 mil. Em Guarapuava (PR), São José dos Campos (SP) e Taubaté (SP), outras três cidades monitoradas pela iniciativa, havia obras em andamento que foram todas concluídas após atuação do projeto.
Desde 2016, a TB acompanhou obras como essas, financiadas pelo ProInfância do governo federal, por meio do Obra Transparente e do projeto Tá de Pé Obras. O propósito da organização era aumentar a transparência e accountability dos governos federal e municipais na execução de projetos de infraestrutura educacional, uma vez que, em dez anos de programa, 46% das quase nove mil obras financiadas estavam paralisadas ou atrasadas.
Enquanto o Tá de Pé contava com a população para monitorar as construções e reformas, o Obra Transparente fortaleceu observatórios locais para que esses fiscalizassem as obras públicas nas regiões em que atuavam. As entidades monitoravam as construções, buscando indícios de atraso ou abandono, que, caso fossem confirmados, eram levados ao poder público para providências. Além disso, cobravam as prefeituras pela conclusão de construções inacabadas sem novos atrasos ou paralisações.
Foram selecionadas 135 obras escolares para terem seus processos de contratação e execução monitorados, em 21 municípios da região Sul e Sudeste com a presença de observatórios ativos, vinculados ao sistema em rede do OSB. Na maioria dos casos, os órgãos municipais deram abertura às contribuições das organizações locais e utilizaram-nas para demandar que as empresas contratadas fizessem correções nas obras em andamento.
A iniciativa da TB funcionou em três etapas principais: mapeamento de dados sobre as obras, capacitações dos parceiros e monitoramento em campo. De acordo com Bianca Vaz Mondo, gerente do projeto, a presença das organizações nos locais monitorados se mostrou importante já na primeira etapa.
Os observatórios precisavam coletar, diretamente com as prefeituras, dados atualizados sobre o andamento das obras, uma vez que a plataforma SIMEC do governo federal continha lacunas e desatualizações. A existência de um diálogo prévio entre as organizações e o poder público local e a prática de obter informações foram facilitadores nesse processo.
“Monitorar uma política pública parte da premissa de que existem dados mínimos e confiáveis, e vimos que isso não é garantido. Nesse caso, nós pudemos encontrar outras vias para chegar às informações necessárias. Mas deficiências existem e são um obstáculo relevante para o trabalho de controle social”, afirma Mondo.

Os treinamentos também foram oferecidos a observatórios que não eram parceiros do Obra, após a conclusão do projeto, o que ampliou o alcance e impacto da metodologia da TB na qualidade das obras escolares entregues pelo país. As oito edições de formação alcançaram, ao todo, cerca de 270 participantes.
Para Ney Ribas, atual vice-presidente do OSB e, à época do projeto, presidente da instituição e responsável por coordenar os 21 observatórios, a metodologia de ‘começo, meio e fim’ no monitoramento da obra pública foi fundamental para qualificar o trabalho que já era realizado pelas organizações locais. Ele diz que, com o Obra Transparente, a rede de organizações passou a atuar na área com mais segurança.
A gerente do projeto concorda: o sucesso da iniciativa, para Bianca Mondo, está na combinação entre a mobilização estruturada de cidadãos já engajados, com experiência em monitorar os recursos públicos, e a capacitação técnica para direcioná-los na área de obras. Ela destaca que, com isso, o nível de profundidade dos questionamentos e contribuições dos voluntários dos observatórios foi maior do que em outras experiências em que atuou.
Já na etapa de campo, as organizações locais tinham um suporte eventual de uma Câmara Técnica, criada para situações que exigiam conhecimento especializado, como de engenharia. O prazo curto para análise de licitações e o modelo custoso foram limitações a esse trabalho de suporte, mas a equipe da Câmara foi fundamental em casos como o de Araucária, em que interveio com questionamentos técnicos que levaram a mudanças.
Apesar do impacto positivo na cidade paranaense, a Prefeitura de Araucária está entre as que receberam com resistência as observações técnicas do Obra Transparente sobre as obras escolares, afirma Ney Ribas. “Foram raros os municípios que estavam preparados. E quando eu digo preparado, significa que o gestor tinha consciência do papel do controle externo e social”, diz.
Em outros municípios, Paranaguá (PR) e Uberlândia (MG), por exemplo, houve abertura ao diálogo. Nos dois casos, foram realizadas reuniões com os gestores municipais para entender e solucionar os entraves às construções escolares em andamento que não avançavam.
Já em Taubaté (SP) e Foz do Iguaçu (PR), a abertura do poder público aos problemas detectados pelos observatórios resultou na cobrança das empresas contratadas por correções nos projetos. Na cidade paulista, a equipe do Obra Transparente acabou por substituir os fiscais municipais, suprindo as insuficiências da fiscalização municipal e contribuindo para a conclusão de quatro obras que estavam em atraso.

A Transparência Brasil também observou falhas sistemáticas e melhorias possíveis no financiamento de obras escolares pelo ProInfância, contribuições encaminhadas ao governo federal. Ao final do projeto, das 135 obras monitoradas, 55 (40,7%) haviam sido canceladas. Em debate que reuniu representantes do poder público, de órgãos de controle e da sociedade civil para discutir as falhas estruturais do FNDE, o consenso foi por mudanças urgentes.
O balanço geral do projeto, para Bianca Mondo, é de um efeito prático direto, com a correção de problemas e conclusão de parte das obras, e institucional, ao fortalecer e qualificar tecnicamente os observatórios. “Nós possibilitamos uma melhora da qualidade da execução [das obras] ao apontar: ‘tem esses problemas e isso tem que ser corrigido’. Foi um trabalho de suporte ao monitoramento que o próprio poder público deve fazer como órgão contratante”, destaca.
Além disso, o Obra contribuiu com o controle social ao investir numa cultura que torna o cidadão protagonista em seu município, na opinião de Ney Ribas. Essa cultura abrange desde as metodologias de capacitação até o estímulo da população pelo interesse sobre o impacto das ações do poder público.
O vice-presidente do OSB entende que é necessário investir nisso para além do trabalho dentro dos observatórios. Uma forma encontrada pelas entidades locais de engajar a população, por exemplo, foi de apresentar os resultados alcançados pelo Obra Transparente em eventos em seus municípios. Mas ainda é preciso, segundo Ribas, uma cultura de transparência por parte dos órgãos públicos, para que disponibilizem informações de maneira completa e acessível.
A gerente do Obra Transparente lembra, ainda, que o projeto, junto do Tá de Pé Obras, marcou a retomada da atuação da Transparência Brasil no controle social sobre contratações públicas. A partir disso, a organização trabalhou com o tema em contratos de merenda escolar, compras emergenciais para enfrentamento da pandemia de Covid-19 e, atualmente, com contratos de medicamentos por meio do Medicamentos Transparentes.
Esse conjunto de projetos dá visibilidade para uma área que continua muito opaca, complexa e com alto risco de fraudes e corrupção por movimentar grandes volumes de recursos públicos. Após 25 anos de trabalho, a TB segue fiscalizando o que, nas palavras de Mondo, ‘movimenta tudo o que a administração pública faz’.



